
Antonio Candido: Literatura de mil gumes em alguns destaques
Nesse momento de anti-intelectualismo latente e de reformas que destroem o que havia de formação na sociedade, a presença de Candido parece garantida entre nós. Sua estatura era tal que até o opressor o reivindica para compor suas fileiras.
Antonio Candido, presente!
Antonio Candido (1918 – 2017) foi o gigante de um tempo em que ainda era costume pensar o país como um povo e uma cultura em construção. Seu Formação da Literatura Brasileira (1959) está ao lado dos livros dos grandes intérpretes da formação nacional (Sérgio Buarque, Caio Prado Jr., Celso Furtado, Mario de Andrade, entre muitos outros). Parece que esse tempo se esgotou ou ao menos está em vias de acabar. A dúvida que fica no momento é sobre a atualidade desse pensamento diante do desmanche do projeto de formação.
Pois só há formação onde há perspectivas reais para ela. Candido fazia parte de um grupo social de intelectuais de outro tempo e de outra têmpera, para quem um país formado significava não só gente instruída capaz de satisfazer seus direitos mais básicos, mas uma sociedade que se outorgava o direito de sonhar e de criar estruturas fundamentais, mesmo que na periferia, que sustentassem seu movimento em direção à integração social das massas historicamente espoliadas e excluídas. Um mundo mais generoso que cimentasse o velho chão feito de lama e sangue, superando as anomalias de uma ex-colônia escravagista. Realizar uma nação, dotá-la de uma cultura plural e criadora, não necessariamente imitativa dos modelos das sociedades centrais, mas antes congruente com sua diversidade e suas imensas potencialidades.
O contraste com nosso tempo é patente, pois hoje, como se costuma dizer sem trégua nem vexame, o que interessa em um país são apenas seus “mercados”. Da cultura vai sobrando, para muitos, tão somente algumas ideias fixas, que mentem para si sobre suas reais perspectivas.
O falecimento de Antonio Candido por isso vai marcar talvez uma época, que recua para condições adversas: será o fim do pensamento globalizante, crítico e solidário? Marcharemos rumo à mesquinharia intelectual de quem consegue pensar apenas o seu pedaço, seu interesse particular, por meios rígidos e frases feitas, que são pouco mais que ilusão e imediatismo? A trajetória do crítico, que sempre casou o rigor com a criatividade, a elegância ensaística com a didática, tem a ensinar o exato oposto disso a esse país que insiste em sua gramática de equívocos.
Da sociologia à crítica literária, da pesquisa histórica aos textos de intervenção política, Candido sempre primou pela recuperação do herdado pela história e do que poderia ser construído. Sua tomada de posição política à esquerda, no entanto, nunca se confundiu com o dogmatismo e o autoritarismo. No campo da Sociologia, deixará seu clássico estudo sobre o caipira paulista (Os parceiros do Rio Bonito, 1964), ainda hoje um modelo de descrição e análise minuciosas da materialidade de uma cultura em declínio, captando toda sua intensidade e intersecção de elementos: economia de subsistência e tipos de povoamento, alimentação e meios de vida, relações de trabalho e comércio, representações mentais e conflitos com a civilização urbana, enfim, os fatores de dissolução dessa cultura. E tudo isso sem estardalhaço teórico-metodológico algum, apenas interesse genuíno pelo objeto e suas especificidades, que é o ingrediente raro da melhor crítica, inimiga de toda retórica saudosista ou formalismo preguiçoso, típicos das mentalidades conservadoras.
De sua crítica literária, toda ela também feita de análises profundas e senso do concreto, tornaram-se pioneiros e hoje clássicos os ensaios sobre Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar, Machado de Assis e Aluísio de Azevedo, Bandeira e Drummond, Mario e Oswald, Graciliano, Clarice, Rosa. Mas para traçar as linhas de nossa formação literária, leu praticamente tudo. Mas ainda sobra espaço para os degraus da literatura mundial: Balzac, Zola, Conrad, Verga, Buzzatti, Dostoiévski, Kafka. Aqui como acolá, as análises formais primorosas, a escrita arejada e elegante unificam-se à crítica social e política de modo sutil e sem costuras, convertendo a forma literária em um meio de descoberta e apreensão de processos sociais ocultos sob o manto da normalidade e do conformismo ideológico. Tal foi o programa deixado em Literatura e Sociedade (1965). Conforme mostrou Roberto Schwarz, foi Candido quem deu pela primeira vez atualidade à crítica dialética na teoria literária brasileira, alçando-se ao patamar da melhor crítica internacional (ao lado de Auerbach, Lukács, Benjamin, Adorno).
Por conseguinte, sempre valerá lembrar como Candido colocou-se entre os grandes pensadores das formações sociais e mentais do Brasil contemporâneo. Em sua análise das Memórias de um Sargento de Milícias (no ensaio famoso “Dialética da Malandragem”, 1970, in: O discurso e a cidade, 1993), ele mostra como um certo material sócio-histórico – o modo de vida de uma massa de dependentes sem eira nem beira num país cindido entre senhores e escravos – é formalizado pelo romance de Almeida, revelando uma “dialética da ordem e da desordem” que reconstrói mimeticamente uma determinada estrutura social moldada pelo favor e as exceções à norma burguesa estrita. Um país gerido sob o ritmo pendular de norma e contravenção, feito de violências reais e simbólicas, que ele descobrira anos antes no “mundo muito misturado” da ficção de Guimarães Rosa, também ele imantado por “um princípio de reversibilidade” de contrários, que deixa, por exemplo, “a geografia deslizar para o símbolo e o mistério”, “o jagunço oscilar entre o cavaleiro-soldado e o bandido”, “a mulher e o homem”… uma longa série de conversões do mesmo no outro, que se universaliza. E é esse mesmo “sentimento de contrários” que retorna no “Esquema de Machado de Assis” (in: Vários escritos, 1970), seja na “reversibilidade entre a razão e a loucura”, seja no “contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial”… o que numa chave materialista totalizada por nosso tempo parece remeter às formas do estado de exceção generalizado do capitalismo brasileiro.
Não é por acaso que a obra de Antonio Candido gera consenso em todos os quadrantes, dentro e fora da universidade. Ninguém que tenha sensibilidade para o campo das humanidades desconhece que ele formou uma escola dos melhores críticos do país (Roberto Schwarz, Paulo Arantes, José Antonio Pasta, Rodrigo Naves, Alfredo Bosi, José G. Merquior, David Arrigucci). Tradição recebida, tradição formada.
Na verdade, entretanto, fica muito difícil para o campo liberal-conservador engolir o conteúdo do que ele põe a nu em sua forma crítica, um campo que não esconde sua luta pela manutenção do atraso. Pois esse é o campo político que tende a normalizar a exceção à lei e aos direitos no Brasil, a naturalizar as hierarquias, as iniquidades, os privilégios, a dependência e as relações de classe brutalizadas, a falsa polidez dos dominantes, a assídua trapaça política, o golpismo contra as forças populares emergentes, indiscriminadamente chamadas de “populistas”. Além de detectar tudo isso nas malhas da grande literatura, Candido fez luta política tomando partido pelos oprimidos, afirmando o significante que hoje assusta os parvos: a luta para ele era sim pelo socialismo democrático.
Num de seus ensaios político-literários mais interessantes sobre a identidade entre a ordem e a transgressão, a polícia e o crime, que remete ao contexto pós-64, Candido escrevia: “para obter esse resultado”, isto é, a normalidade da repressão, “a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada”. E assim surgem indivíduos instigados a “expressar a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara” pela dominação social (“A verdade da repressão” in: Teresina etc.).
Emerge aqui o exato oposto da formação humanista pela qual Candido tanto combateu, o lado que costuma aderir às forças da dissolução de formações mal-acabadas como a nossa.
Trechos de Antonio Candido
Da Literatura
Da literatura empenhada no Brasil em formação
Da relação entre Literatura e Sociedade
Dialética da malandragem
O Bom Escritor
Literatura como um direito
Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito.
Direitos Humanos
Sobre o Tempo
Reforma Agrária
Sobre o Socialismo
Socialismo como finalidade sem fim
Face Humana Do Capitalismo
Do Futuro numa realidade desigual
Referências
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira – (Momentos decisivos). São Paulo: Martins, 1959, 2 vols.
____________. Os parceiros do Rio Bonito – Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.
____________. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970/2000.
____________. Literatura e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz / Publifolha, 1965/2000.
____________. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
____________. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
Sobre ANTONIO CANDIDO:
ARANTES, Paulo. Sentimento da Dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
___________ & ARANTES, Otília B. Fiori. Sentido da formação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
SCHWARZ, Roberto. “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem'” in: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
___________. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
___________. “Antonio Candido – um verbete”. Revista USP, n. 17, 1993. (http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25979)
Reportagens:
Carta Maior – Antonio Candido inaugura biblioteca do MST e fala da força da instrução
Jornal da USP – Professor Antonio Candido morre aos 98 anos
Brasil de Fato – “O socialismo é uma doutrina triunfante”