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Austrália: o Brasil que deu certo? Um brasileiro que lá viveu nos conta

A Austrália é sempre citada como exemplo de desenvolvimento para o Brasil e nos últimos anos também como exemplo de liberalismo econômico. Contudo o suposto paraíso possui problemas que contrariam essa visão e sua realidade está bem distante do que os think tanks liberais dizem dele.

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Elevado índice de desenvolvimento humano (IDH), economia pungente e repleta de paisagens dignas de cartão postal, como a Ópera de Sydney, que se tornou capa para este artigo, fazem com que a Austrália seja um país admirado pelo mundo todo.

A população australiana é pouco maior que 10% da brasileira (23 milhões). De densidade populacional muito baixa, a maioria dos habitantes da Austrália se concentram no litoral leste do país, apesar do seu tamanho continental. E distante: localizada a mais de 16 mil quilômetros de Londres, a Austrália foi considerada pelos colonizadores ingleses, em 1788, como a tirania da distância.

Para os brasileiros, por compartilhar algumas características em comum com o Brasil – como o seu tamanho continental e passado colonialista –, a Austrália também é considerada “o Brasil que deu certo”. No entanto, nem tudo no suposto paraíso é perfeito, e, ao tomarmos ciência disso, surgem muitos questionamentos, entre eles a própria crença de que a Austrália é “o Brasil que deu certo”.

Longe de ser o paraíso idealizado por muitos, a Austrália é um país que também tem os seus problemas, mas que passam despercebidos. O objetivo deste texto é tentar mostrar tanto os fatos bons, como os fatos nada animadores da Austrália, os quais não são de conhecimento geral por serem pouco divulgados ou mesmo omitidos pela grande mídia. O texto também pode ser considerado em parte um testemunho de um liberal brasileiro que viveu na Austrália. Caberá ao leitor, ao terminar a leitura, tirar suas próprias conclusões.

As origens da Austrália Moderna e seu desenvolvimento

A história australiana é relativamente curta, até para os parâmetros brasileiros, pois muitas cidades brasileiras já têm 450 anos de fundação, enquanto Sydney tem somente 230 anos. Sydney tem o passado inglório de ser fundada em um país teoricamente despopulado, que serviria como colônia penal inglesa até 1850. Porém, em 1890, a Austrália já era, per capita, um dos países mais ricos do mundo (assim como a Argentina e Nova Zelândia).

Não tem como compreender o desenvolvimento da Austrália sem considerar o peso da colonização inglesa. Na época, no século XVIII, a Inglaterra começava a chamada Revolução Industrial, portanto todo esse “know-how” e sistema legal foram facilmente transmitidos. Os australianos falam a língua franca do comércio na Ásia, em virtude da “Pax Britânica” durante quase todo o reinado da Rainha Vitória no século XIX e, posteriormente, devido à sua aliança com os EUA no século XX. Porém o chamariz econômico da ilha-continente sempre foram minérios e produtos agrícolas.

Por ser um local distante de Londres, a viagem durava 6 meses antes do surgimento do barco a vapor. Essa distância acabou favorecendo a autonomia política da Austrália em relação à sua metrópole, o que a permitiu várias conquistas progressistas que muitos países nem imaginavam serem possíveis na época, como o sufrágio universal, o voto feminino, o salário mínimo, horas de folga reguladas, férias pagas, livre associação de sindicatos, entre outros direitos. Porém todas estas mudanças foram feitas e integradas de acordo com o modo de vida da sociedade australiana, a qual, antes mesmo da independência, já usufruía de uma economia desenvolvida e com uma riqueza bem distribuída.

No entanto, entre 1870 a 1896, vários países do mundo passaram por profundas crises econômicas (o que também explica as grandes imigrações europeias para o Brasil, EUA e outros países, como a própria Austrália). Em 1890, uma dessas crises causou uma tremenda depressão na economia da colônia australiana e que praticamente se prolongou até a sua independência, em 1901. Para dar uma melhor compreensão do impacto dessa crise, lembremos da cidade de Melbourne, que, em 1890, era a maior cidade do império inglês e tinha a maior quantidade de arranha-céus depois de Londres, tanto é que mesmo hoje em dia a cidade é repleta de prédios da época vitoriana. Uma propriedade em Melbourne comprada no pico máximo do boom em 1890 só teria o mesmo valor quase 100 anos depois, ou seja, as consequências da crise tiveram um impacto duradouro na economia australiana. Uma das razões é justamente que a Austrália, assim como o Brasil, tem uma economia dependente de minérios, o que a torna suscetível a booms econômicos seguidos de implosões (1920 – boom; 1930 – depressão; 1950/60 – boom; 1970 – depressão).

Essa depressão de 1890 transformou a Austrália de um país que recebia imigrantes de qualquer parte do globo para um país de política migratória racista, por meio da “White Australia Policy” [1]. Tal política consistia em barrar a entrada de imigrantes de outras partes do mundo que não fossem considerados brancos/caucasianos (portugueses, italianos, espanhóis e gregos não eram considerados brancos). A “White Australia Policy” foi extraoficialmente esquecida após a segunda guerra mundial e foi oficialmente abolida em 1973. A Austrália passou quase 80 anos com um sistema de imigração racista, no qual a imigração da Grã-Bretanha, Holanda e norte da Europa era incentivada fortemente, mas quem não fosse branco era rejeitado. O maior medo da época era que a Austrália seria “invadida por asiáticos”.

Outra política adotada devido à grande depressão de 1890 foram as altas tarifas alfandegárias que protegiam as indústrias deficitárias. Todos os anos o governo ajustava os impostos de modo que as indústrias locais conseguissem sobreviver. Isto aumentava o custo de vida enormemente, mas a Austrália sempre teve salários altos e os sindicatos sabiam que conseguiriam aumentos por consequência. Esse protecionismo australiano durou quase um século e apenas com a chegada do neoliberalismo, em 1983 (pelo partido trabalhista), ele foi parcialmente abolido, porém houve um processo gradual de ajuste para evitar desemprego em massa.

A questão aborígene: massacre e segregação

Mas, sem dúvida, a maior mancha da história da Austrália desde o estabelecimento da colonização europeia foi o tratamento dispensado aos moradores originais da Austrália, os aborígenes. Assim como os indígenas brasileiros, muitos aborígenes morreram assim que entraram em contato com os europeus e a sua cultura, que existe há 50-60 mil anos na Austrália (a cultura Mesopotâmia começou somente há 8-10 mil anos atrás), foi praticamente dizimada. Já os aborígenes da Tasmânia foram praticamente extintos no século XIX [2]. No total, entre 1788 e 1900, cerca de 85% da população aborígene foi dizimada. [3] Aos descendentes dos aborígenes que sobreviveram a esse genocídio, foi reservada uma política de discriminação oficial: desde a colônia penal, entre 1788 até 1967, os aborígenes não eram considerados no censo, escola e hospitais, sendo totalmente ignorados.

A Austrália foi colonizada pelo conceito de “Terra Nulius”, ou seja, não tem dono. Por isso, muitos aborígenes foram expulsos de suas terras ancestrais e não têm como recorrer, já que foram vendidas para europeus. Apesar de todos esses problemas, que são relativamente comuns durante a era das navegações, a maioria dos países desenvolvidos que foram colonialistas trataram de reparar seus abusos, tentando ao máximo praticar políticas que promovessem equidade de tratamento. Contudo, na Austrália, isso ainda é um assunto tabu. As populações aborígenes ainda hoje estão com os índices de bem-estar extremamente baixos em relação aos da população branca (a expectativa de vida é quase 10 anos menor que a da população em geral) e apesar de serem por volta de 3% da população, eles compõem quase 20% dos presidiários [4].

Frágil Democracia: válida até onde a Inglaterra permitir

O primeiro-ministro eleito democraticamente Gough Whitlam ouve o pronunciamento do Governador Geral anunciando sua destituição do cargo.

Como o voto é obrigatório desde a independência em 1901, os partidos têm de conceber políticas que englobem toda a população, assim os partidos que possuem uma visão mais centrista tendem a ser eleitos. O centrismo político australiano tende a defender a proteção aos mais necessitados aliada à igualdade de oportunidade, o que diminui as tensões sociais (a maior revolta na Austrália foi em 1854 em que morreram 27 pessoas – Rebelião Eureka [5]). Então poderíamos dizer que o posicionamento político do australiano, oscilando entre social-democracia e o social liberalismo, tornou a Austrália uma das democracias mais estáveis do mundo.

A Austrália ficou independente do Reino Unido em 1901. Contudo, até hoje a soberana maior do menor continente do mundo é a rainha da Inglaterra, tanto que Elizabeth II tem o poder de derrubar um governo democraticamente eleito pelos australianos. Apesar da rainha não se intrometer nos assuntos internos da Austrália, existe o governador geral que representa a rainha na Austrália. Em 1975, Gough Whitlam, do Partido Trabalhista, foi democraticamente eleito como primeiro-ministro pelos australianos, mas acabou sendo derrubado pelo governador geral da época [6][7].

Apesar de ser algo previsto em lei, trata-se praticamente de um golpe de Estado dado pela rainha da Inglaterra com envolvimento da CIA [8]. Imagine o presidente de Portugal obrigando o Brasil a ter novas eleições para presidente, por achar que o representante eleito não lhe representa. Tamanha interferência na política australiana por parte da Inglaterra é um tema polêmico na Austrália, em que vários livros foram escritos debatendo cada detalhe do período em que a eleição de Gough Whitlam não foi reconhecida. Vale lembrar que isso não ocorre apenas na Austrália, outras ex-colônias inglesas, como o Canadá, têm processos iguais ou muito parecidos, só que nunca invocados.

O perfil do australiano e direitos sociais

Foram ditas algumas das semelhanças da Austrália com o Brasil, mas se destacam também as diferenças entre eles. Enquanto a sociedade brasileira tende a ser elitista e classista, a sociedade australiana possui uma visão de mundo mais igualitária, na qual não há uma crença forte em hierarquias, prevalecendo o senso de que ninguém é melhor do que ninguém.

Obviamente, a sociedade australiana também é dividida em classe sociais, mas existe uma cultura que dificulta muito a vida de quem quer “furar a fila” se valendo de seus privilégios de classe. Pessoas melhores de vida pagam mais impostos e reconhecem que manter a alta qualidade de vida tem um preço. Elas consideram que é mais justo que a sua vantagem econômica contribua para outros indivíduos que não são tão afortunados como os mais ricos, contribuindo para o bem estar social e evitando o crescimento da violência e de outras mazelas causadas pela desigualdade social.

Talvez isso também explique a resistência dos australianos contra reformas trabalhistas. Apesar de vários governos terem tentado aplicá-las, inclusive os do Partido Trabalhista, a Austrália poderia ser considerada um país em que os trabalhadores são “privilegiados”, pelos (neo)liberais brasileiros, dado que conseguiram manter uma legislação trabalhista rigorosa, que lhes garantem um dos salários mínimos mais altos do mundo [9] e até um tipo de “FGTS” [10]. Os australianos também gozam de uma ampla rede de seguridade social. [11]

Um país de sorte

O Brasil e a Austrália têm vários fatores em comum, inclusive geológico: os dois países surgiram há milhões de anos no supercontinente chamado “Gondwana”. Por consequência, muitas das riquezas minerais que o Brasil possui, a Austrália também compartilha. Essa é uma das razões pelas quais a Austrália passou a ficar mais rica. Logo no início da colonização australiana, por volta de 1840, houve uma corrida do ouro. Outro fator importante é que a Austrália também é uma potência agrícola, assim como o Brasil, cujos produtos são vendidos pelo globo. E, como não poderia faltar num país parecido com o Brasil, a Austrália também tem a economia dominada por oligopólios de duas a três empresas em cada indústria, já que o mercado doméstico não comporta mais (ex: 4 bancos, 3 supermercados, 3 TVs comerciais, 2 jornais etc.).

A economia australiana está há quase 27 anos sem recessão [12] [13], ou seja, um australiano que começou a trabalhar por volta de 1994, quando o Plano Real foi implementado no Brasil, não sabe o que é uma sociedade com alta taxa de desemprego e outros problemas socioeconômicos tão comuns aos brasileiros. Desde 1994, o desemprego na Austrália não passa de 8,5%, chegando a ficar em 3,9%, mesmo que por um período curto, em 2008 [14].  A Austrália implementou um dos mais bem-sucedidos sistemas de imigração per capita do mundo (7 milhões desde 1945) [15] e suas cidades constantemente estão nas listas dos melhores lugares para se viver e morar.

[12] Taxa de crescimento do PIB da Austrália. Fonte: Trading Economics.

[14] Taxa de desemprego na Austrália.
No final dos anos 60, a economia australiana se beneficiava do boom dos minérios, apresentando taxa de desemprego menor que 2% e taxa de crescimento de 8% em 1969. O maior problema da época era a guerra do Vietnã, mas os demais problemas acima citados começavam a acumular e, como aconteceu em 1890, depois do boom vem a decepção que amplifica estes problemas. Isso foi identificado pelo jornalista Donald Richmond Horne, o qual, em 1964, declarou que a “Austrália era um país de sorte, governado principalmente por pessoas de segunda categoria” (tradução minha), ou seja, o desenvolvimento da Austrália se explica mais por suas condições históricas e geopolíticas, e não tanto pela forma como é governada [16].

Muitas destas críticas à Austrália começaram a ser enfrentadas em 1973 por um governo do Partido Trabalhista (centro-esquerda) de Gough Whitlam [17] depois de quase 23 anos de governo liberal (centro-direita). Em termos econômicos, Whitlam não foi bem-sucedido, mas em termos de sociais e políticos foi um sucesso enorme, pois terminou com a “White Australia Policy”, iniciou um programa de incentivo às artes (começo da indústria australiana de Cinema e da Música), instituiu a gratuidade do ensino superior público, implantou um sistema de saúde público e foi o primeiro governo ocidental a reatar relações com a China, que é uma das razões do sucesso econômico da Austrália nos últimos 30 anos. Todavia, como dito anteriormente, em 1975, esse governo foi retirado do poder pelo governador geral (representante da Rainha na Austrália).

O primeiro-ministro Bob Hawke, que por muitos anos também foi o recordista mundial de consumo de cerveja: bebeu 2,5 litros em 11 segundos.

O governo seguinte, do Partido Liberal, tentou políticas para aquecer a economia, mas com pouco sucesso. A Austrália entrou em uma espiral para baixo quase sem controle. Em 1980, o então primeiro ministro de Cingapura, Lee Kuan Yew, disse que a Austrália estava se tornando o “White Trash” da Ásia [18]. A Austrália chegou ao fundo do poço: era ineficiente, burocrática, lenta e politicamente virulenta. Como reação, em 1983, o Partido Trabalhista voltou ao poder, com a eleição do ex-sindicalista Bob Hawke como primeiro-ministro. Hawke estudou em Oxford e tinha a confiança do setor corporativo de que ele poderia fazer as reformas necessárias e convencer a população dos seus objetivos [19]. O ministro da economia do seu governo foi Paul Keating, que, apesar de não ter educação universitária, foi o grande arquiteto das reformas do governo australiano no período [20]. Posteriormente, Keating foi o primeiro-ministro australiano, sucedendo Bob Hawke.

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De 1983 a 1996, Hawke e Keating reduziram impostos, tornaram o câmbio flutuante, reorganizaram o governo, flexibilizaram regras trabalhistas (mas mantiveram a maioria das proteções), reduziram aos poucos as tarifas alfandegárias e privatizaram empresas públicas (mas mantiveram a grande maioria – a Austrália tem tantas estatais quanto o Brasil [21], sobre o que falaremos um pouco a seguir). Com a universalização do ensino superior no governo de Whitlam, uma quantidade enorme de pessoas nos anos 1980 entrou no mercado de trabalho com um alto nível de qualificação; como consequência, a produtividade australiana subiu bastante. Vale lembrar que nos anos 1980 e 1990, os preços de minérios e produtos agrícolas eram baixos (por isso a crise no Brasil na mesma época, além da quebra do país em 1982) isso torna estas mudanças ainda mais impressionantes.

Após 13 anos de governo, Hawke e Keating foram substituídos por John Howard, do Partido Liberal, que também foi tesoureiro do governo liberal anterior e apoiava muitas das reformas que Hawke e Keating implementaram. John Howard era um exímio articulador político e foi considerado politicamente morto várias vezes, mas sempre recuperava sua influência política, tornando-se o primeiro-ministro da Austrália em 1996 [22].

O Governo de John Howard promoveu as seguintes medidas:

  • Implementação de um imposto único para serviços (o GST; assim como no Brasil, existia uma infinidade de impostos entre estados, como PIS, ICMS, etc.);
  • Independência do Banco Central;
  • Mais corte de impostos;
  • Aumento da eficiência do governo;
  • Fortalecimento das relações comerciais com a China;
  • Reforma das leis trabalhistas (não acabou com elas, mas as reorganizou).

Porém, por volta de 2003, o boom das commodities voltou e seu governo ficou complacente. Em 2004, o governo Howard ganhou maioria nas duas câmaras (senadores e deputados) e usou esse poder para aumentar a imigração significantemente, beneficiar as mineradoras reduzindo as proteções ambientais e tentar uma reforma que indiretamente reduzia as garantias trabalhistas, o que provocou sua derrocada. Seu governo também ficou marcado pelos retrocessos que promoveu em relação aos aborígenes, entre eles a negação do genocídio aborígene. [23] O governo Howard, no final de 2007, perdeu a eleição para o Partido Trabalhista depois de quase 12 anos no poder, sendo sucedido por Kevin Rudd.

Em 2008, Rudd é eleito primeiro-ministro, recebendo o Estado com dívida praticamente zero e economia em rápido crescimento devido à exportação de minérios para a China. [24Sua eleição foi parecida com a eleição de Barack Obama em 2008, em que existia uma imensa vontade de mudança por parte da população. O discurso de Rudd o apresentava como aquele que seria capaz de fazer uma nova forma de governar, mas garantindo que manteria os acertos do Governo Howard.

Quando a grande crise econômica de 2008 estourou, o desemprego começou a subir. O governo, para conter o aumento de desemprego, implementou medidas como distribuir dinheiro diretamente aos cidadãos australianos para estimular o consumo: os aposentados ganharam um cheque adicional para gastar e todos os contribuintes ganharam A$900 pagos diretamente no banco. Também houve incentivos fiscais temporários e outros investimentos públicos, como o que promovia melhorias às escolas [25]. Tais incentivos econômicos direcionados pelo governo federal aumentaram a confiança econômica. Assim, as pessoas não interromperam gastos, a economia se manteve aquecida e isso garantiu que a Austrália fosse a única economia do mundo desenvolvido que conseguiu evitar a recessão global entre 2008-2010. Outro fator que favoreceu a Austrália foi o programa anti-crise adotado pela sua principal parceira econômica, a China, o que manteve as exportações de minérios e produtos agrícolas da Austrália e do Brasil em alta.

Desde 2010, a Austrália apresenta um crescimento econômico permanente, porém devido ao seu conturbado cenário político dos últimos anos, a maioria dos primeiros-ministros não duram muito no cargo. Em 2015, a Austrália estava no seu 5º primeiro-ministro em menos de 5 anos – a média de permanência no cargo nos 30 anos anteriores era um primeiro-ministro para cada 7 anos [26].

Existem duas grandes explicações para esse crescimento econômico em meio a um caos político. Uma é que a alta taxa de imigração (chegou a mais de 300 mil por ano) incentiva a economia local por trazer mais gente para trabalhar, mas em compensação reduzia a qualidade de vida da população já existente, visto que sobrecarregou o sistema de transporte público, aumentou a especulação imobiliária e acirrou a competição no mercado de trabalho [27] [28]. Já a segunda explicação é que durante os governos Hawke, Keating e Howard, houve uma grande redução dos cargos políticos na burocracia governamental. Atualmente a burocracia australiana é quase independente dos governos e basicamente “toca o barco”. Mas, sem consenso político, as grandes reformas ou obras ficam paradas, então é como se fosse uma bomba relógio que reduzirá o crescimento no futuro.

A Austrália possui tantas estatais quanto o Brasil

Na Austrália, o Estado tem até empresas de fabricação naval: Submarino da classe Collin, da Marinha Real Australiana e construído pela estatal ASC.

Uma coisa que é bastante interessante na Austrália é que, por ser um país enorme com uma relativa pequena população e que está distante dos grandes centros de influência, como Londres e agora Washington, não é economicamente viável empresas comerciais se estabelecerem em muitas partes do país. Então, em muitos casos, empresas estatais foram criadas para suprir essa demanda, ou, mais recentemente, agências reguladoras, que servem como protetoras do consumidor e mantêm um nível de serviço básico para todos (saúde, educação, polícia, banco, correios etc.).

É bastante comum na Austrália que as empresas públicas e privadas sigam o princípio de “duty of care”, ou seja, apesar de não estar prescrito na lei, empresas em geral têm de ter os interesses do cliente em mente. Obviamente o sistema não é perfeito e o governo tenta ao máximo manter as pessoas com boa qualidade de vida sem serem importunadas, mas o Governo australiano é uma espécie de garantia que o mercado vai atender os interesses de todos ou pelo menos da grande maioria de maneira igual. Um exemplo é a ABC, uma estatal de jornalismo, que funciona como a BBC inglesa e cujo objetivo é manter qualidade de informação, inclusive tendo boa audiência.

Seguem todas as estatais nacionais australianas atualmente existentes, em ordem alfabética:

AirServices – Companhia de tráfego aéreo.
ASC Pty Ltd – Construção e manutenção de navios e submarinos.
Australian Broadcasting Corporation – Emissora pública australiana equivalente à BBC inglesa que fornece serviços de televisão, rádio e serviços on-line.
Australian Government Future Fund – A Previdência Social australiana.
Australian Government Solicitor – Serviço jurídico do governo australiano e de suas agências.
Australia Post – Serviços postais, equivalente à estatal brasileira Correios.
Australian Rail Track Corporation – Companhia ferroviária responsável pelo gerenciamento das linhas interestaduais.
Clean Energy Finance Corporation – Banco estatal criado para financiar investimento em energia limpa, equivalente a um “BNDES verde”.
Defence Housing Australia – Estatal que fornece habitação e serviços relacionados aos membros da Força de Defesa australiana.
NBN Co – Responsável pela infraestrutura de internet banda larga de alta velocidade usando fibra, wireless e transmissões via satélite em todo o território australiano.
Reserve Bank of Australia –  O Banco Central australiano.
Screen Australia – Mais um “BNDES” australiano, focado no desenvolvimento da indústria australiana.
Snowy Hydro (13% nacional e 87% estadual) – Estatal responsável pela infraestrutura energética.
Special Broadcasting Service – Empresa pública de radiodifusão que opera quatro canais de TV (SBS, SBS Viceland, Food Network e NITV) e cinco redes de rádio (SBS Radio 1, 2 e 3, SBS Chill e SBS PopAsia).

A Austrália ainda possui estatais da Capital Federal e estaduais que são:

• Capital Federal: ActewAGL (50%), ACTEW e Capital Metro (Capital Federal).
• Nova Gales do Sul: Ausgrid (49%), Endeavour Energy, Forestry Corporation of New South Wales, Integral Energy, NSW TrainLink, RailCorp, Hunter Water Corporation, Landcom, Newcastle Port Corporation, Port Kembla Port Corporation, Snowy Hydro (58%), State Transit Authority, Superannuation Administration Corporation, Sydney Ports Corporation, Sydney Trains e Sydney Water.
• Território do Norte: PowerWater.
Queensland: CS Energy, Energex, Ergon Energy, Powerlink Queensland, Port of Brisbane, Port of Townsville, Port of Mackay, Queensland Rail, SunWater, Stanwell Corporation e Tarong Energy.
Austrália Meridional: Adelaide Metro e SA Water.
Tasmânia: Aurora Energy, Forestry Tasmania, Hydro Tasmania, Irrigation Tasmania, Metro Tasmania, Motor Accidents Insurance Board, Port Arthur Historic Site Management Authority, Public Trustee, TasRail, Tascorp, TasNetworks, TasPorts, TasWater e TT-Line.
Vitória: Port of Melbourne, Port of Hastings, Snowy Hydro (29%), VicForests e VicTrack.
Austrália Ocidental: Horizon Power, Transwa, Transperth, Water Corporation, Western Power e Synergy.

A segunda maior dívida privada do mundo

A cara cidade de Melbourne: elevado custo de vida como principal causa do endividamento dos australianos.

Ainda persistem mais alguns problemas “bomba-relógio” na Austrália, mas o principal é alto custo da moradia. O governo, assim como o Banco Central (independente), ao deixar de investir tanto em mineração para passar a investir em moradia, acabaram tornando os australianos mais endividados. A dívida privada australiana já era alta nos anos 2000 e desde 2010 é o segundo país com mais pessoas físicas endividadas do mundo [29]. Portanto, o que já era uma bolha imobiliária passou a ser uma gigantesca bolha que engloba tudo. Existem alguns fatores locais que explicam o fato de moradia ser tão cara, como a Austrália ser um país muito urbano com apenas duas grandes metrópoles (Sydney e Melbourne), as quais possuem pouca área livre para a construção de novas moradias, o que fortalece a especulação imobiliária; incentivos fiscais como isenções de impostos em investimentos imobiliários e a obsessão do australiano em adquirir casa própria.

Nos anos 1960, havia grande incentivo governamental para habitação e praticamente 70% da população tinha uma moradia ou hipoteca, contudo essa proporção tem caído, principalmente para as pessoas mais novas [30]. Em 10 anos, a taxa de australianos com casa própria (sem hipoteca) caiu de 43% para 33% [31]. Mas o preço não sobe porque as pessoas têm dinheiro para comprar? No início sim, porque a taxa de juros no mundo desenvolvido vem caindo desde os anos 1980, mas desde o final da década de 1990 os salários não acompanham mais os preços. Para se ter uma ideia, de 2009 a 2016, um imóvel praticamente teve seu preço dobrado. O mercado só se sustenta porque os compradores pensam que, apesar do preço dos imóveis ser alto, em 10 anos poderá dobrar novamente. É como se fosse um esquema pirâmide que precisa de mais gente entrando na festa para se sustentar [32], até chegar o momento que a maioria não vai mais acreditar mais na pirâmide e aí a casa literalmente cai.

O crescimento da xenofobia

Manifestação contra refugiados no sul da Austrália. Foto: AdelaideNow.

Um grave problema que estava adormecido na Austrália e voltou à tona recentemente é o ódio às minorias, especialmente contra os imigrantes [33]. Via de regra os australianos são receptivos em relação aos estrangeiros. A maioria vê imigração como benéfica para o país, tanto economicamente quanto socialmente, visto que o país, graças à imigração, é considerado uma referência em várias áreas, entre elas a culinária, porque cada imigrante traz consigo uma enorme bagagem cultural e que é misturada com a cultura local, o que cria algo novo. Além disso, a Austrália tem um programa de imigração que foca em pessoas que apresentam habilidades que são escassas no país, portanto, ao contrário de muitos países, imigrantes na Austrália podem ter qualificação, salário e conhecimento maiores que o australiano médio, o qual geralmente não tem ensino superior, mora no interior/periferia ou é trabalhador blue-collar. Contudo, conforme o boom dos minérios perde força e a economia se adapta, o nível de desemprego nas áreas de mineração aumenta, o que está levando as pessoas a criticarem o “outro”: os imigrantes. Este “outro” é considerado como uma elite que talvez não fale a língua local tão bem (todo mundo tem sotaque) e não esteja ligado aos problemas dos australianos nativos, apesar de todo mundo ser um imigrante recente ou não tão recente, exceto os aborígenes, que estão na Austrália há pelo menos 50-60 mil anos.

O nível de imigração para a Austrália é bastante alto desde 2004 e as previsões de queda do fluxo migratório não se confirmaram, já que desde 2011 deveria ter caído um terço ou para metade do nível atual. Com mais imigrantes, a economia australiana se beneficia, devido ao maior número de pessoas no mercado de trabalho, aumentando o PIB, mas, caso a infraestrutura do país não acompanhe essa leva de novos moradores, a imigração também pode inflacionar ainda mais o mercado de imóveis e provocar a queda da qualidade de vida. Os australianos são em geral pró-imigração, mas estão começando a ficar contra, pois a discussão tem de ser levada para o lado racional de que taxa de imigração alta é contra os interesses de quem mora na Austrália e que um patamar mais razoável tem de ser atingido, a menos que a taxa de investimento em infraestrutura aumente de maneira significativa. E essa insatisfação generalizada tem grandes chances de acabar em xenofobia.

One Nation é um partido que vem crescendo nos últimos anos e tem como política a redução da imigração para zero líquido, ou seja, um imigrante só poderia entrar na Austrália se outro imigrante ou cidadão australiano saísse do país ou morresse. Não significa imigração zero, mas provocaria uma queda drástica do fluxo migratório atual [34]. Só que na prática, o que os políticos desse partido querem, destacadamente a líder, Pauline Hanson, é o banimento dos muçulmanos e dos asiáticos, ficando evidente o caráter xenofóbico do seu discurso [35] [36]. Tal discurso em um país em que mais de 30% da população é de imigrantes e 50% são seus descendentes, é como abrir a caixa de Pandora, pois joga com racismo e preconceitos, fomentando conflitos internos capazes de desestabilizar todo o país.

Um outro exemplo da intolerância crescente é o caso da Julia Gillard. Em 2010, Julia foi eleita primeira-ministra e a primeira mulher na história australiana a ocupar este cargo. Seus pais eram imigrantes relativamente pobres do País de Gales. Seu governo não foi bem-sucedido, porém, antes mesmo dela começar a governar de fato, começaram as “críticas”, as quais raramente eram sobre as políticas do seu governo, que seriam extremamente válidas e fazem parte da democracia, mas sobre qual o vestido que ela estava usando, especulações sobre sua vida amorosa, ou sobre sua maneira de falar, considerada frágil. Isso virou uma bola de neve e acabou extrapolando numa campanha virulenta e misógina, e Gillard se tornou alvo de ofensas como “Ditch the witch” (abandonem a bruxa) ou “Bob Brown’s bitch” (a cachorra do Bob Brown – líder do Partido Verde) [37]. Diante de tantos ataques, Julia Gillard não conseguiu concluir seu mandato. Para quem domina o idioma inglês e quiser ver todos os detalhes desta história, o autor Malcolm Gladwell fez um podcast chamado Revisionist History e o primeiro episódio fala sobre Julia Gillard, seu governo e como ela se tornou alvo de preconceitos [38].

Considerações finais

Caso a bolha imobiliária estoure, a Austrália entrará em uma grave e longa recessão por conta do efeito cascata que essa bolha provoca, como a crise de 2008 demonstrou, e demorará vários anos para recuperar sua economia. Muito provavelmente terá a sua década perdida, como ocorreu em 1890.

Apesar da Austrália ter conseguido evitar recessões por 27 anos, caso uma crise aconteça, será que ela pode seguir a mesma receita pós-1890, de bloquear imigração, aumentar taxas alfandegárias e se isolar do mundo? Isso já se mostrou errado há mais de 100 anos [39][40]. Possivelmente algum político terá que aparecer e mostrar o caminho do futuro como Hawke, Keating e Howard demonstraram, mas o caos político tem impedido isso. Será que Donald Horne estará correto mais uma vez e confirmará que a Austrália é um pais sortudo, mas governado por pessoas de segunda classe? Como o economista australiano David Llewellyn-Smith diz, a economia da Austrália dos últimos anos é baseada em Casas e Buracos (mineração), mas será que existe algo mais? Só o tempo poderá dizer e sinceramente esperamos que eles estejam errados.


Revisão e colaboração

Itauã Brgc – revisão.
Jorge Caronte – revisão, inclusão da lista de estatais australianas e nota [19].
Rodrigo Souza – notas [9] e [11].
Marcelo Uchôa – notas [10] e [21].


Fontes

[1] Autralia Government – The changing face of early Australia
[2] Wikipedia – Indigenous Australians
“Generally by the fifth and invariably by the sixth generation, all native characteristics of the Australian Aborigine are eradicated. The problem of our half-castes will quickly be eliminated by the complete disappearance of the black race, and the swift submergence of their progeny in the white.”
[3] Creative Spirits – Aboriginal population in Australia
[4] WebCite – Crime and Justice: Aboriginal and Torres Strait Islander People: Contact with the Law
[5] Ergo – Eureka Stockade
[6] ABC TV – Whitlam Dismissal | 11 November 1975 (Youtube)
[7] The Guardian – Gough Whitlam: 40 years on, the Dismissal’s bastardry still intrigues
[8] The Australian – Whitlam dismissal: Queen, CIA played no role in 1975
[9] The Australian Workers Union – Employment Legislation that effects you at work
[10] Portal Oceania – Leis Trabalhistas na Austrália
[11] Australian Government – Department of Human Services
[12] Ver Gráfico.
[13] The Sydney Morning Herald – This time it’s a recession we don’t have to have
[14] Ver gráfico.
[15] Sage Journals – Attitudes to immigration and cultural diversity in Australia
[16] BBC – Is Australia still the Lucky Country?
[17] AUSTRALIA’S PRIME MINISTERS – Gough Whitlam
[18] ABC News – Singapore founding PM Lee Kuan Yew once warned Australia could be ‘white trash’ of Asia
[19] AUSTRALIA’S PRIME MINISTERS – Robert Hawke
[20] The Guardian – The Hawke-Keating agenda was Laborism, not neoliberalism, and is still a guiding light
[21] Infomey – Funcionalismo Público no Brasil: um gráfico para mudar sua visão
[22] Australian politics – Prime Minister John Howard (1996-2007)
[23] NITV – 7 legacies of John Howard’s government
[24The Age – Captain Rudd sets course for a brave new world
[25] The Sydney Morning Herald – Govt unveils $42b stimulus
[26] The Daily Telegraph – Five prime ministers in just five years… we’re becoming the Greece of the Pacific
[27] ABC News – High immigration masks Australian economic decline
[28] news.com.au – The population boom’s hidden secret
[29] The Economist – How Australia has gone 25 years without a recession
[30] Truths: Property Ownership and Housing Wealth in Australia. Melbourne: Melbourne University Press, 2000, p150-152.
ABC News – Fact file: 9 million homes with 2.6 occupants – this is the Australian housing market
[31] Australian Bureau of Statistics – HOME OWNERS AND RENTERS
[32] The Sydney Morning Herald – ‘Classic Ponzi scheme’: Sydney house prices cost 12 times the annual income
[33] Australia First (site xenofóbico)
[34] One Nation – THIS DOES NOT MEAN ZERO IMMIGRATION
[35] ABC News – Pauline Hanson calls for Muslim immigration ban in maiden speech to Senate
[36] SBS – 10 of Pauline Hanson’s most infamous quotes
[37] The Sydney Morning Herald – Julia Gillard on the moment that should have killed Tony Abbott’s career
[38] Revisionist History – The Lady Vanishes
[39] MEGALOGENIS, George – How Australia was already made great again, and how we can remain so in the Time of Trump.
[40] Macrobusiness – Exclusive: Steve Keen on the secret source of eternal Australian growth

Sobre a questão aborígene ver também:

• BBC – Calls for Australian constitution racist clauses to go
• Australian Human Rights Comission – Constitutional reform: Fact Sheet – Recognising Aboriginal & Torres Strait Islander people in the Constitution

 

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